domingo, 9 de maio de 2010

A Espera


Sinto-me estranho cada vez que leio este texto... Faz-me pensar nas surpresas desagradáveis que a vida nos pode pregar; faz-me pensar como tudo pode acabar de um momento para o outro: partimos e deixamos cá quem mais nos adora e adoramos... Escrevi-o num momento difícil da minha vida (embora a história não tenha sido exactamente esta), por isso tem muito significado para mim. É deprimente, mas há aspectos na vida que o são e não podemos fugir a isso, antes temos que os enfrentar de frente. Espero que gostem.




A impressora fazia um barulho irritante enquanto dela saia um longo documento, com algumas frases em vermelho e outras em negro grosso e carregado. As negras não o incomodavam, mas o vermelho costuma ser mau sinal. Bem, logo se veria; talvez não houvesse necessidade para tais preocupações.
A folha caiu no suporte da máquina e o médico, com um par de óculos em semi-lua na ponta do nariz, fez uma cara assustada.
O coração começou a bater desenfreadamente e o sangue parecia correr-lhe tão rápido nas veias, que era capaz de o sentir... Decerto a derradeira notícia viria. Afinal, as frases vermelhas eram, de facto, mau sinal. E o doutor disse, por fim, numa voz cavernosa e dramática, que o senhor sofria de cancro do pulmão; mas o pior estava ainda para vir: a doença encontrava-se em estado muito avançado, e talvez não tivesse mais de quatro meses de vida.
Os olhos do paciente adquiriram uma profundidade de possuído, e a sua mente pareceu parar durante momentos. Porém, essa foi uma situação efémera, e então uma torrente de imagens e outros pensamentos invandiram-lhe a alma. Não obstante, a única manifestação da sua dor foi uma humilde e solitária lágrima, que rebolou pela sua face estragada pelo tempo. Não tardou a ouvir um “lamento” angustiante do médico, palavra que lhe pareceu, naquele momento de fúria interior, inútil e absurda, apenas pronunciada por um vazio sentido de compaixão.
Levantou-se da cadeira desconfortável e rodou lentamente a maçaneta fria da porta, sem uma palavra, apertando furiosamente a folha onde figurava o diagnóstico a letras vermelhas. Saiu do hospital e pensou no que iria dizer à família, que o esperava em casa, iludida com a sua suposta “saúde de ferro”. E agora essa suposição havia-se revelado errada, e agora essa suposta “saúde de ferro” tirar-lhe-ia a vida e, pior ainda, a família!
No lancil do passeio, os raios de sol daquele quente Verão formavam um arco-íris irónico ao atingirem a gasolina derramada e que caia para a sargeta imunda. Que secreta cortesia da vida, que lhe tentava dar felicidade perante a morte! Que felicidade estranha que ele nunca fora capaz de ver, felicidade que momentos atrás consideraria banal e ascorosa!
Continuou a caminhar, dando passos lânguidos. Foi então invadido pelo cheiro das flores silvestres que se espalhavam aleatoriamente pela berma do passeio. Os seus sentidos pareciam mais apurados; talvez a tristeza o fizesse procurar a felicidade mais avidamente, mesmo nas mais pequenas coisas; afinal, só se dá valor às coisas quando já é tarde de mais... Mas como seria ele capaz de pensar em felicidade quando sabia que a morte estava a caminhar, lenta e dolorosamente, para ele?!
Aproximou-se do seu degradante carro branco e abriu a porta, que fez um som quase ensurdecedor.
E em casa lá estavam eles: os filhos e a mulher que amava. Amor temporário, que lhe seria roubado por um traço no destino, um fim no caminho. Que homem infeliz tem o infortúnio de saber quando morrerá? Saber que ia morrer fê-lo olhar para a vida com outra perspectiva, uma que não desejava. Decerto viveria os seus últimos quatro meses de existência de forma diferente se não soubesse que ia morrer; se não estivesse naquela posição, poderia morrer no dia seguinte vítima de um tiroteio descontrolado, mas isso não o faria mudar a sua forma de viver os momentos anteriores. Mas perante tal situação, era inevitável encarar a vida com outro olhar.
Cumprimentou a família, mas por alguma razão não lhes quis contar o que lhe fora revelado. Talvez fosse para não os sujeitar ao mesmo a que ele fora. Adiar o sofrimento; que cobardia! Faria como fez durante toda a sua medíocre vida: fugir dos problemas como um repugnante idiota, evitar as lágrimas como um valente cobarde! Justificou o seu aspecto de devastado com uma gripe patética. E voltou a sair porta fora.
A sua mente voltou a ser invadida por pensamentos soltos; mas cedo se concentrou num assunto: a sua vida, o que fizera na vida. A conclusão foi simples: para além de uma família de que se orgulhava, a sua existência não contava com mais nada de particularmente interessante... Estava plenamente convencido que ter uma família seria o suficiente para se sentir realizado; mas em retrospectiva, as coisas não eram bem como as pintava. Afinal, como qualquer um, gostaria de ter tido uma vida confortável, enfim, um estatuto; mas esperara mais um pouco, e mais algum tempo, e no fim os sonhos não passaram disso mesmo: sonhos.
Os sons das ondas deleitavam-no de uma forma quase absurda e as gaivotas sobrevoavam o oceano naquele fim de tarde de Verão, em que o sol estava ainda mais vermelho e quente. Este era o ponto em que o fim começava. Um fim que chegaria tão certamente como aquele sol ardente desapareceria, engolido pelo oceano. Uma obra que o sol pintara e que a água roubaria. Incrível como até o mar motivava uma alegoria à sua morte!
Qual era, afinal, a conclusão? Uma vida só se vive uma vez e, repugnantemente, era necessário o fim para se desejar o início. Agora era o início do fim, e o que deixou para trás lá ficou, adormecido na escuridão do esquecimento. Como continuaria quando sabia que, cedo, tudo terminaria?
Ligou o carro, e mergulhou na imensidão da luz do sol brilhante daquele dia de Verão, esperando, simplesmente, o comboio do fim...






Live la Vida Sofa!
El Sofa

1 comentário:

Jess Rodrigues disse...

Medo.
Mas um medo bom.
Esse tipo de textos fazem o meu género...sao deprimentes e tristes.

Gosto*